(Por Allan de Abreu- diarioweb – Fotos: Edvaldo Santos - São José do Rio Preto, 7 de Agosto, 2011)
Cachoeira do Talhadão, entre Palestina e Orindiúva: tesouro natural e histórico
As margens do rio Turvo escondem preciosidades históricas e arqueológicas que ameaçam desaparecer com a construção de duas usinas hidrelétricas. Entre os vestígios encontrados por pesquisadores estão cerâmicas e urnas funerárias de índios que habitaram a região há mais de mil anos, além do cemitério de uma vila do século 18 mantida por padres.
O Ministério Público de Paulo de Faria, que investiga os danos causados pelas usinas, solicitou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) um laudo sobre os achados do Talhadão. O órgão recebeu a demanda, mas ainda não há data definida para a visita ao Turvo. “Vamos avaliar se há realmente material com interesse arqueológico no local, e se será afetado pela usina”, diz o arqueólogo do Iphan Rossano Lopes Bastos.
O cemitério, que fica no município de Orindiúva, é o único vestígio que restou de São Vicente do Talhadão, vila construída às margens do rio. Parte da história do local foi recuperada em estudo feito pelo engenheiro Antônio Carlos de Carvalho para a Associação de Defesa do Meio Ambiente dos rios Turvo e Preto e da Cachoeira do Talhadão (Amertp).
A maior dificuldade, segundo Carvalho, é a ausência de documentos sobre a vila. O único encontrado por ele até agora é um artigo publicado no jornal “A Tribuna”, de Nova Granada, que descreve uma visita do inspetor de alunos César Monteiro às ruínas do lugarejo, em 1943. Segundo ele, havia ruínas do que denomina “casa dos padres”, além de um cemitério em formato arredondado, com muro de pedras basálticas sobrepostas, sem argamassa, e um portão de madeira na entrada.
Na descrição do inspetor, havia um enorme crucifixo em madeira bem no meio do cemitério, e pequenas cruzes marcando as sepulturas. “Numa dessas cruzinhas tivemos a oportunidade de ver uma data feita por pedacinhos de ferro em forma de tachinhas dizendo o ano em que foi ali enterrado alguém: 1777”, informa o texto.
O Diário visitou o local, descoberto pelo engenheiro no início do ano. Da descrição de Monteiro, só sobrou o cemitério em ruínas, com o muro de pedras e o pilar central do crucifixo - as sepulturas foram tomadas pelo mato. Tudo está cercado por plantações de cana-de-açúcar. Além do texto de Monteiro, a lembrança da Vila de São Vicente do Talhadão permanece na memória dos moradores mais antigos da região, como o aposentado Carlos Mor Rami, 83 anos. “Eu me lembro dos vestígios de uma serralheria, e de uma visita de um grupo de padres que veio estudar a vila, em 1959”, afirma.
Rio abaixo, há vestígios do que os ribeirinhos do local chamam de “fornalha”, rochas assentadas com terra vermelha. Ao lado, é possível observar quatro pilares, dois com 1,5 metro e outros dois com um metro de altura, com encaixes para vigas transversais. Segundo Carvalho, não é possível precisar a função desses objetos, nem a idade. “Só é possível inferir que são posteriores à construção do cemitério, porque são assentados com barro, uma técnica mais sofisticada.”
Das ruínas históricas, a “fornalha” será alagada pelas hidrelétricas. Já o cemitério corre o risco de desaparecer pelas alterações no entorno da cachoeira do Talhadão. “É um local sensível e já muito danificado pela ação do homem”, diz o engenheiro.
ARQUEOLOGIA
O Turvo também esconde vestígios arqueológicos, incluindo material cerâmico indígena, da tradição Aratu - pré-colombianos que habitaram o Brasil do norte paulista até o litoral pernambucano há 5 mil anos. No ano passado, os arqueólogos Fernando Zamora Favarelli e Neide Barrocá Faccio coletaram 1.334 fragmentos em sete sítios ao longo do rio, próximo do município de Cardoso.
Em 2004, o agricultor Sérgio Aparecido Gonçalves Nunes, 56 anos, encontrou uma urna funerária indígena próximo à barranca do Turvo. “Era um pote de barro com meio metro de altura e uma ossada dentro”, diz. Nunes cogitou entregar o objeto a um especialista, mas acabou enterrando novamente. “Hoje me arrependo. Mesmo assim, acho que ainda consigo localizá-lo novamente.”
Há três semanas, outra descoberta passou a intrigar os moradores de Palestina. O aposentado José Garcia, 79 anos, pescador no Turvo há cinco décadas, relatou ao engenheiro Carvalho a existência de uma pedra com área de três por quatro metros riscada com figuras abstratas. “Ainda não sabemos se é obra humana ou da natureza. Precisamos de uma avaliação técnica”, diz o engenheiro.
TURVO ABRIGA ESPÉCIE ÚNICA DE PEIXES
A construção das duas usinas hidrelétricas no rio Turvo não é uma ameaça somente à história, segundo pesquisadores. Também compromete espécies de peixes do rio, parte deles só encontrados no Turvo. Entre 2004 e 2008, o biólogo da Unesp de Rio Preto Renato Braz de Araújo pesquisou os peixes no rio, na altura dos municípios de Nova Granada e Icém. Encontrou 52 espécies, incluindo uma rara, denominada pequira, e três “provavelmente novas para a ciência”.
Em relatório encaminhado à Amertp, ONG contrária à construção das usinas, o biólogo critica os dois empreendimentos da Encalso. “Os peixes são os organismos mais afetados pelos barramentos, especialmente por serem facilmente visíveis no ambiente, terem valor econômico (pesca) e também por serem sensíveis às mudanças ocorridas no sistema aquático. Com isso, espécies de piracema têm seus movimentos obstruídos ou bastante dificultados pelas barragens, resultando em redução populacional de diversas espécies”, escreve o especialista.
Araújo também aponta falhas no estudo de impacto ambiental (EIA) e no relatório de impacto ambiental (Rima) referente às usinas. De acordo com ele, o estudo constatou 32 espécies de peixes no local em apenas uma coleta, o que, para o biólogo, é insuficiente para estimar a riqueza de espécies de peixes na área de influência das usinas.
“Empreendimentos como as PCH (pequenas centrais hidrelétricas) Talhado e Foz do Preto representam séria ameaça aos habitats e microhabitats tanto no leito original dos rios e afluentes, lagoas marginais, como nas áreas cobertas por vegetação nativa localizadas em suas margens, que servem como refúgio, fonte de alimentação, proteção contra predadores e locais para reprodução dos peixes”, conclui o pesquisador.
TAUNAY ATRAVESSOU RIO NO SÉCULO 19
Pelo rio Turvo passou um visitante ilustre do império, o escritor, militar e político Alfredo D’Escragnolle Taunay (1843-1899), mais conhecido como Visconde de Taunay. Vindo de uma frente de batalha da Guerra do Paraguai, no Mato Grosso, para levar ao imperador informações sobre o combate, em julho de 1867 Taunay chegou à freguesia de São Francisco de Salles, hoje um município próximo a Frutal (MG).
No dia 13 daquele mês, ele atravessa o rio Grande de canoa e passa dois dias caminhando pela mata até chegar à margem direita do Turvo. Lá, hospedam no rancho do “sr. Valério”, numa “casinha encravada num terreno todo conquistado a machado”.
Na manhã seguinte, atravessa o rio e chega a Rio Preto, onde é acolhido na única casa coberta de telhas do arraial. Em seu diário, o visconde anota que o arraial tinha meia dúzia de palhoças abandonadas, e vaticina o futuro do vilarejo: “Há um igrejinha em construção, e cremos que por muitos anos fique nesse estado, quando não se arruíne totalmente”.
Edvaldo Santos
José Garcia, pescador do Turvo há cinco décadas, indicou local da pedra com supostos escritos humanos
MP INVESTIGA HIDRELÉTRICAS
As Promotorias do Meio Ambiente de Paulo de Faria e Palestina instauraram inquérito para investigar possíveis danos ambientais e ao patrimônio histórico causados pela construção de duas hidrelétricas no rio Turvo.
Para o Ministério Público de Paulo de Faria, há falhas no estudo de impacto ambiental das hidrelétricas apresentado pela Encalso, e o documento terá de ser refeito. O documento não informa em detalhes todas as espécies de fauna e flora potencialmente afetadas e também omite a possível existência de sítios arqueológicos nas proximidades do rio - o MP solicitou parecer do Iphan sobre o assunto.
Se o impacto ambiental for severo, o MP espera que a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) negue licença ambiental para as obras. Caso isso ocorra, a Promotoria ameaça ingressar na Justiça com ação civil pública. “Essas obras não podem acontecer, porque são uma ameaça muito séria ao Turvo”, diz Gisele de Oliveira Garcia Paschoeto, advogada da Amertp.
Ela e o marido, o contador Peter Paschoeto, se engajaram na luta contra as usinas no fim do ano passado. “Um dia meu filho de 13 anos chegou e falou pra minha mulher: ‘Pô mãe, você não vai fazer nada?’ Aí parece que eu acordei para o problema”, afirma Peter, que costuma pescar com o filho nas águas agitadas do Turvo. Com a ajuda do casal, a Amertp foi fundada no fim do ano passado, e é o segundo movimento popular de Palestina contra a instalação de hidrelétricas no rio - o primeiro, bem-sucedido, foi em 1983.
Edvaldo Santos
ENCALSO REBATE CRÍTICAS
Em nota, a Encalso ressalta que “não há registro” de material arqueológico na “literatura científica de arqueologia”. Mesmo assim, a empresa garante que “conduzirá todos os trabalhos necessários para que não aconteça nenhuma destruição de material arqueológico devido à implantação das PCHs”.
De acordo com a Encalso, em agosto de 2009 foi feito um diagnóstico arqueológico na área, com autorização do Iphan. Esse estudo constatou apenas um sítio arqueológico cadastrado no Turvo, mas fora da área dos dois empreendimentos. E, em entrevista com os moradores da região, constatou que dois fizeram menção a achados arqueológicos.
A empresa admite a possibilidade de existência de material com interesse histórico no Turvo. “O potencial arqueológico foi determinado como sendo entre médio e alto para a ocorrência de sítios arqueológicos, o que será confirmado ou não em uma próxima etapa dos trabalhos, identificado como etapa de prospecção arqueológica”, informa a nota. Nesta etapa, caso algum sítio seja localizado, será retirado do local e levado para um museu que a Encalso estuda instalar na região, conforme a empreiteira.
USINAS
A Encalso prevê investir R$ 154 milhões na construção das duas usinas, denominadas Talhado e Foz do Preto. A produção de energia das duas novas unidades deverá atingir 135 mil megawatts (MW) por ano, suficientes para atender a uma população de 210 mil habitantes.
A empreiteira chegou a agendar audiências públicas no fim de julho em Riolândia e Palestina, mas adiou o encontro - não há nova data prevista. Os empreendimentos tem forte resistência por parte de ambientalistas e deputados da região, além do bispo de Rio Preto, dom Paulo Mendes Peixoto.
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